As memórias de uma tampa de
sanita
Velha e
desconchavada, substituída e atirada para o lixo como coisa inútil, deu-me para
escrever as memórias, porque é a única coisa que ainda pode fazer uma velha. É
verdade que hoje as pessoas passam por mim e nem se dignam sequer olhar-me. Não
admira, é do hábito, pois fazem o mesmo com os seus velhos… Mas, eu sou aquela
que, ao passar por qualquer pessoa, posso dizer com toda a propriedade: “Já te
conheço o cu”…
Feita de
madeira e lacada a branco, cedo tive a mania das grandezas, não aceitando a
companhia das minhas primas de plástico por as considerar “de baixa condição”.
Quando fui colocada numa sanita de gente importante, por onde passariam “rabos”
mediáticos e seletos, essa mania mais se acentuou, embora hoje me arrependa.
Pensava que, pela minha condição, daria poiso a “rabos reais”, macios e bem
cheirosos. Mas estava bem enganada pois são como os outros e o meu “sofrimento”
foi o mesmo daquelas a quem eu chamava “ralé”. Sem qualquer diferença. Além
disso, relembraram-me que a minha bisavó era uma tábua de pinho com um buraco
no meio…
Recordo com
saudade a senhora Maria. Limpava-me todos os dias com um produto que me deixava
a “pele” macia e leitosa. Até tinha o cuidado de deitar na água do fundo da
sanita um produto para me evitar cheiros incómodos. Sim, porque cedo aprendi
que os produtos “despejados” na sanita por todos aqueles rabos, por mais dignos
que fossem, ou “cheiravam muito mal ou muitíssimo mal”… Até os gases, aqueles
malditos gases disparados como bombas ou “de fininho”, deixavam-me tão tonta,
que cheguei a pensar “ganzar-me” com eles. Ainda pensei que os donos de
“padarias” mais aperaltadas tomassem uma colher de perfume pela manhã para,
quando estas se “abrissem” e deixassem sair algum “artigo” ou mesmo que fosse
só para “falar” com “voz” mais ou menos forte, exalassem um odor agradável, dos
que dá gosto cheirar. Mas não, nem esses fugiam à regra e estava sempre sob um
“stress odorífico” terrível, que me impedia de luzir…
Dos homens
tenho muitas queixas, pois eram brutos e porcos. Batiam o tampo com força,
sentavam-se de qualquer forma e faziam chichi lá do alto do aro, borrifando-o e
“regando” o pavimento em redor, pondo os “cabelos em pé” à senhora Maria, que
se fartava de resmungar.
Só de ver os
garotos ficava assustada porque batiam com o tampo no aro só para se
divertirem, para além de, sempre que faziam as suas necessidades, nunca
descarregavam o autoclismo. Então, o cheiro pestilento subia do fundo da sanita
e entrava-me pelos poros dentro, até a sra. Maria me salvar quando descobria a
marotada.
Sofria muito
das “dobradiças” porque havia rabos muito pesados, sendo os piores aqueles que
nunca estavam quietos, forçando-me as “articulações” a esforços suplementares.
Aliás, classificava os “ditos cujos” pelo tempo de permanência no meu buraco:
Uns “faziam visita de médico” pois ainda nem tinham acabado de se sentar e já o
“saco” estava despejado, não chegando sequer a aquecer o aro. Em contraste,
havia os que ficavam horas seguidas, com tempo para dormir ou ler um livro completo.
Por falar em livro, nunca percebi bem a razão de eu induzir à leitura. Mal se
alapavam em cima de mim, dava-lhes umas ganas de ler que tudo servia. Até a
lista telefónica… Aliás, era um bom local para escrever no Facebook.
Dos meus
utilizadores, recordo com muita pena os sofredores. Ficavam a puxar tempos
infinitos, sentia-lhes o suor frio a escorrer pelo corpo e via as lágrimas nos
olhos enquanto gemiam… E quando saía algo, era duro, tão duro como o granito,
mais parecendo que assistia a um parto do que a um ritual diário…
Pelo
contrário, outros eram rápidos e disparavam “em esguicho”, atingindo-me quando
não dava tempo para se sentarem…
Confesso que
tenho saudades de sentir os rabos coladinhos a mim. Gostava muito dos peludos
apesar de me fazerem cócegas no aro e darem-me vontade de rir. No entanto,
também me davam grande prazer os depilados, macios e suaves qual seda, quase
sempre de senhoras mais ou menos jovens.
A sra. Maria
era muito minha amiga. Um dia arranjou-me uma capa em tecido grosso e garrido
que me dava um grande conforto, em especial nos dias frios. E eu sentia-me bem
com aquela capa a aconchegar-me o tampo. Mas foi sol de pouca dura pois o dono
da casa, que era dos que “regava” o pavimento ao redor, resmungava e implicava
com aquilo dizendo que era “uma mariquice” e não descansou enquanto a senhora
não me voltou a despir.
A minha
prima foi colocada numa repartição pública. Coitada dela, teve uma vida difícil
pois era sempre um a seguir ao outro. Só à noite, depois da limpeza, é que
podia descansar para, no dia seguinte, se repetir o massacre. Contou-me que
nunca percebeu porque é que muitas pessoas lhe limpavam o aro antes de
assentarem o traseiro, havendo até quem o forrasse por completo com papel
higiénico. Chegou a pensar que a estavam a embrulhar para enviar de presente a
alguém, mas nunca tal aconteceu, tendo ficado no mesmo sítio até lhe darem o
meu destino: A reforma.
Quando as
dobradiças começaram a dar de si e a tinta a lascar, perdi as ilusões e senti
que ia ser descartada. No dia em que o tampo se separou do aro, o dono da casa
disse à mulher: “Maria, a tampa da sanita está velha, temos de a substituir e
mandar para o lixo”. Vi logo que me iam fazer o mesmo que tinham feito aos pais
quando envelheceram e os “despacharam” não sei para onde. Já não foi surpresa
quando me “despediram” do lugar que ocupava na sanita há tantos anos, sem uma
atenção, sem uma festa de despedida ou agradecimento, e me mandaram para a
lixeira, aquilo a que eles vulgarmente chamam de “REFORMA”… Aquilo a que os
franceses vulgarmente chamam de “RETRAITE” (RETRETE)…Pura coincidência… ou
talvez não…
2 comentários:
Há coisas na vida que não falam e ainda bem, porque roubavam postos de trabalho aos investigadores!
Uma casa de banho pública deve ter muitas histórias para contar.
O meu abraço
Filho da escola, é raro apareceres por aqui, mas quando apareces rebentas com tudo. Gostei.
Um abraço!!!!
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